Como parte de uma investigação que venho realizando, apresento aqui alguma reflexões sobre o papel do pesquisador quando assume a cartografia como metodologia de pesquisa enquanto abordagem de procedimentos.
São reflexões a partir da literatura, como também da caminhada metodológica.
Nos últimos anos, a cartografia tem ganhado espaço no campo da pesquisa em educação, especialmente quando o objetivo é compreender práticas complexas, dinâmicas e em constante transformação, como a educação híbrida. Diferentemente dos métodos tradicionais, que buscam representar uma realidade supostamente estática e objetiva, a cartografia propõe mergulhar nos processos, acompanhar fluxos e caminhar junto com os sujeitos envolvidos. É nesse contexto que o papel do pesquisador ganha novos contornos: ele deixa de ser um observador distante para tornar-se um pesquisador-cartógrafo, que se implica, se afeta e coengendra o campo investigado.
1. Pesquisar com o campo, não sobre o campo
Uma das premissas centrais da cartografia é que o conhecimento não é produzido de fora, mas no contato, na experiência compartilhada entre pesquisador e campo. O pesquisador-cartógrafo participa das dinâmicas, conversa, observa, registra, intervém naturalmente e, acima de tudo, se deixa afetar. Essa postura, longe de comprometer o rigor científico, amplia a profundidade da análise, pois reconhece que toda pesquisa é atravessada por subjetividades, relações, tensões e sensibilidades.
A cartografia, portanto, exige atenção, abertura e presença. Cada gesto, cada fala e cada encontro é tomado como pista que ajuda a compor o mapa em constante movimento que é a realidade educacional.
2. O pesquisador como parte ativa do processo
Na perspectiva cartográfica, o pesquisador não é neutro, e nem precisa ser. Ele assume sua posição como alguém que transforma e é transformado, que intervém e aprende, que registra e participa. O conceito de coengendramento, inspirado em Deleuze e Guattari, aparece como central: pesquisador e campo se constituem mutuamente ao longo da investigação.
Isso significa que:
- o dado não está “dado”: ele se produz na relação;
- a escrita é sempre situada e engajada;
- o pesquisador admite sua própria implicação ética e afetiva; e
- a análise nasce do encontro entre experiência e reflexão.
Ao compreender que mapear é criar, e não apenas descrever, o pesquisador-cartógrafo desenvolve uma postura inventiva, crítica e sensível, reconhecendo que sua presença opera como força produtiva dentro do campo.
3. A educação híbrida como território em movimento
A cartografia é especialmente potente quando aplicada a fenômenos que não se deixam capturar por definições rígidas, como a educação híbrida. Longe de significar apenas a combinação entre presencial e virtual, a educação híbrida se mostra, segundo o texto, como um ecossistema vivo, no qual tecnologias, afetos, práticas pedagógicas, políticas públicas e relações humanas se entrelaçam. É, portanto, um território que muda o tempo todo.
Nesse cenário, o pesquisador-cartógrafo se torna uma espécie de antena sensível: acompanha fluxos, identifica tensões, reconhece potências, observa resistências e mapeia como o humano e o tecnológico se reconfiguram mutuamente nas práticas educativas.
4. Por que apostar na cartografia como metodologia em educação?
Porque ela:
- valoriza o processo, e não apenas o resultado;
- reconhece a educação como prática viva, relacional e imprevisível;
- produz conhecimentos situados e comprometidos com a realidade;
- permite captar elementos que métodos mais tradicionais tendem a ignorar;
- dá visibilidade às forças, afetos e movimentos que atravessam o campo educacional; e
- rompe com a ilusão da neutralidade e assume uma ética da presença e da escuta.
No contexto brasileiro atual, marcado por políticas públicas emergentes, novos modelos pedagógicos e intensificação das tecnologias digitais na escola, a cartografia oferece um caminho metodológico capaz de acompanhar essas transformações sem engessá-las.
Ainda sem querer concluir… o papel do pesquisador na cartografia é, acima de tudo, o papel de alguém que caminha entre o mapa e o território. Ele não busca representar a realidade de forma definitiva, mas construir mapas vivos, provisórios e sensíveis aos deslocamentos do campo. Isso faz com que a cartografia seja mais do que uma técnica: ela se torna uma atitude ética, estética e política diante da pesquisa.
Num tempo em que a educação se reconfigura rapidamente, apostar em metodologias que acolham a complexidade, e que reconheçam o pesquisador como parte dela, não é apenas uma escolha metodológica, mas uma necessidade epistemológica.

Um comentário:
Hoje, em mais um dia do meu Estágio 3 no Ensino Fundamental, vivi uma experiência que imediatamente dialogou com este artigo. Ao trabalhar o livro O Cabelo de Lelê com a turma do 3º ano, percebi na prática aquilo que o senhor descreve como pesquisa cartográfica: um processo vivo, afetivo e imprevisível, em que pesquisador e campo se coengendram.
A cena em que, no início, nenhuma criança reconheceu o próprio cabelo crespo, mas ao final levantaram as mãos com orgulho após nossas conversas sobre identidade, ancestralidade e força, mostrou como a presença e a escuta produzem deslocamentos reais. Cada gesto, cada fala e cada silêncio se tornou pista, exatamente como o senhor aponta.
Hoje também presenciei o uso espontâneo de IA pela professora regente durante a preparação da aula e encontrei estagiárias de Pedagogia EAD da UFAL, experiências que ampliaram ainda mais a sensação de território em movimento. Ao ler seu artigo depois disso, foi como encontrar linguagem para aquilo que senti no campo: eu estava cartografando sem perceber.
Agradeço pela consistência e generosidade do seu trabalho, que não só orienta seus estudantes, mas nos ajuda a nomear e compreender processos que estamos vivendo na prática.
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